Os textos deste espaço não são exatamente sobre os trabalhos visuais, mas os acompanham, como se as ideias vazassem entre diferentes suportes. Por ser artista e escritora, costumo trabalhar nesses dois campos, algumas ideias surgem como imagem, outras como palavras e, então, vou desdobrando algumas delas.

Muitos destes escritos estão ainda incompletos, são ideias, fragmentos de pensamentos que exponho para irem ocupando o mundo e, talvez, tomarem outra forma.

 

As criaturas

As criaturas, as persigo por aí. Busco nos tempos de nada e espaços esquecidos. Pesquiso esses seres viventes, não formam uma espécie, mas indivíduos que não conseguem viver em sociedade ou comunidade, são isolados. Alguns não podem se mover, outros têm vidas curtas demais, outros não resistem ao oxigênio, a luz ou a falta dela, são variados os motivos. Mas não é por falta de vontade que não vivem em grupos. Lhes falta, e esse é o ponto comum entre as criaturas, algum tipo de característica que os mantenha vivas e móveis para achar outro indivíduo. Não. Elas não nascem umas das outras. Surgem por geração espontânea, do bolor, da poeira, na fresta entre os tacos da casa. Quase não é possível vê-las mas meus estudos ainda não puderam comprovar sua invisibilidade, ao contrário, ouso afirmar que são visíveis. Embora saiba muito pouco sobre entes invisíveis.

Seus materiais são muitos: ferro, pele, poeira casco de árvores, pedras, mofo, água, vento, som, sonho et coetra. Um piscar de olhos e elas podem estar diante de olhos que veem, digo, durante mesmo o piscar. Também o canto do olho é sensível a sua presença. Apenas uma e sempre só. Presença. Com muita sorte de ima dedicada pesquisadora, pude, algumas vezes, por ter um dispositivo de captura de imagem ao meu alcance. Aqui aproveito para gradecer o sistema e instituições de fomento por investirem tanto no pesquisador. Voltando, por ter um dispositivo de captura dee imagens, sorte e dedicação pude fotografá-las. Assim, se torna mais fácil escrutinar essas existências efêmeras. Sim são todas imagens de seres que já não mais estão entre nós, suas existências duram pouco, ainda mais diante a a presença de um outro ser seja de que espécie for, até mesmo eu.

A novidade aqui é que, deixando um dispositivo de captura de imagens ligado em um quarto dos fundos de uma casa prestes a ser demolida, pude ver uma delas, uma criatura, existindo e se movimentando por alguns segundos.

 

As Manchas na parede - esquecimento

 

            A casa já havia sido abandonada há muito. Seria destruída, mas preservariam sua estrutura externa. Dela, não se faria escombros. Mas as paredes seriam removidas. Não me pergunte como. Não tenho esse conhecimento. As paredes azuis desbotadas. Um azul triste e claro. Parece Hospital. Nenhum dos três estava mais lá. Nenhum deles mais. Dois mortos e ela se apagando a cada dia. Os olhos estão sempre fechados e a boca aberta. É a boca que faz o laço. Escancarada. A bichinha. Amofinou e encolheu. Fechou os olhos. Ela também não estava mais dentro da casa abandonada. Não havia ninguém. Somente aquelas paredes azuis manchadas. As manchas. Elas ocupam os lugares de fotografias. Molduras de retratos. Não, não existe mais nada disso. Só as manchas em forma de retângulos.

Se inscreveram ali nas paredes. Os retratos deles todos. Os que viveram ali. Os filhos. Não, não existe mais ninguém. Alguns foram embora, outros morreram. Foi a ida e vinda do Sol quem escreveu as manchas ali. E agora, do vazio, vejo ainda as caras, as poses. O vestido. Maria e um vestido branco, muito jovenzinha. Não sei se o vestido era mesmo branco. Imagino que fosse dia da primeira comunhão, mas ela nunca fizera primeira comunhão. As manchas estavam lá e, nas manchas, podia ainda vê-los. Eles haviam se tornado as manchas. A família. Seus filhos, ele dois e sua irmã. O tempo também já havia partido.

Quem sabe, então, foi essa a primeira vez que percebi essas inscrições? Oubli. O foi muito antes? Visitando uma outra casa vazia. Nem era casa, um sótão. Eles se escondiam lá. Não eram uma família, estavam se escondendo. Eram o que podiam. Tempo em que vizinhos ficam atentos, denunciam. Eles se moviam durante a noite e dormiam de dia, era para não levantar suspeitas. Não fez diferença. Foram mortos, todos eles.

A menina, adolescente, guardava recortes de jornal. Estrelas do cinema. Se dizia assim: as estrelas de cinema. Ela as colava na parede. Fazia isso muito antes que eu visitasse o sótão. Antes que virasse lugar de passeio. Nesse tempo, era apenas seu esconderijo. Antes de serem denunciados e todos mortos. Quando fui visitar, eram as manchas na parede. Os pequenos retângulos vazios. Retratos recortados de jornal. E a menina já tinha virado cinza e fumaça. Tinha virado livro.

 

Casamata - trechos

Me arrasto doente até sua casa. A pele com feridas cobertas de tinta violeta. Como os cachorros de rua que têm berne em sua carne. É assim que chego à sua porta. Ele me deixa entrar, nunca me negou alojamento e não pergunta nada. Me oferece sopa e os primeiros cuidados com os ferimentos. Tão diferente de tudo que conheço, tão diferente. Não quer saber dos lugares por onde passo e nem porque volto tão arranhada e suja. Lava o cheiro de álcool das minhas roupas, limpa a tinta violeta, coloca seu emplastro natural sobre minhas feridas e me deixa descansar algumas horas. Meu cuidador.

 

Mais uma vez pelas calçadas, sim, sei exatamente para onde estou indo. Me engano e finjo que ando a esmo como se minhas patas carregassem a carcaça a qual chamo corpo. Mentira. Sei de corpo inteiro aonde vou, sei exatamente dar a volta para não cruzar o túnel. Tentei atravessa-lo certa vez e um carro com sirenes me fez parar e me jogou entre as galerias. Fiquei lá deitada como morta, pois morta, os homens da sirene paravam de bater. Tem horas que fico morta porque param de me bater. Vou pelo outro lado, demora mais e vou mais devagar, gosto de esticar o trajeto, caminhando. Não tenho pressa, sei que, ao chegar, nada de novo vai acontecer. Minhas feridas da pele serão reabertas e os vermes voltarão a se alimentar de mim. Não é verme, é berne. Acho que são vermes que gostam de carne já morta, putrefata. Vou pensando sobre a palavra putrefata no caminho, me esgueiro pela parede de pedra cortada e aproveito para coçar as costas. Gosto de ir vagando assim sem pressa e com destino certo, gosto da hora da noite, hora bem escura e preta, um ponto bem justo entre o azul marinho de fim de tarde e azul se abrindo da manhã. Ando sob o céu preto. A cidade se encarrega de apagar as estrelas, mesmo estando mais escura que de costumava. A cidade ainda apaga o céu. Me conforta.

 

Meu sorriso é débil, deve ser. Não sorrio na frente de espelhos, então não sei. Como também não tenho certeza se possuo todos os dentes. Posso passar a língua para conferir, farei isso.

 


CAMINHANDO – CORPOS, TORÇÃO, SUPERFÍCIES

 

Seu mundo tinha se transfigurado, só sobraram suas costas. O que tinha que se pendurar estava pendurado. Mas vivia só com as costas, como se a carne tivesse sido metade arrancada. Uma transfiguração assim. Nisso, chegam aos meus ouvidos os sons do sino do entardecer. Ecoam diretamente na alma. Balança o que está pendurado. Sua alma vibra em resposta ao sino do entardecer. Toca e ecoa como se tivesse se fundido ao sino. Você é um sino. Ressoa até pela ponta dos dedos. E aquele sino é também sua morada. Não, não havia nem interior, nem exterior. O sino, ele próprio, é a sua morada, um sino que se fez com a criação do mundo. Seu sino é narrado e transmitido todas as noites. Toca em todos os recantos – viver e morrer, não percebo o limiar entre a vida e a morte.                                  Kazuo Ohno

1.    O ato e o corpo.

 

Descobri uma realidade nova não em mim, mas no mundo. Encontrei um “caminhando”. Um itinerário interior fora de mim. (CLARK. 1965)

Com essas palavras Lygia Clark começa seu texto Do ato de 1965.  Um relato, uma escrita diante de uma descoberta. Essa descoberta havia sido feita dois anos antes, é em 1963 que Lygia realiza seu Caminhando pela primeira vez. Ela vinha da série bichos (1959/1964) e esse espanto se apresenta a ela, nela e no mundo. Os bichos formam uma série de objetos com os quais se pode interagir. Superfícies de alumínio e dobradiças, ao mexer em uma parte de seu corpo, para manter o equilíbrio, o objeto se reorganiza. Lygia dizia àqueles que não sabiam com interagir com o objeto: não e preocupem, o bicho sabe. Ela dá saber ao bicho, uma existência, uma forma de vida. Algo, ali, já se anuncia, um sopro de vida produz uma interação entre gente e bicho, um modo de saber desacostumado da razão humana. Um modo de ser que carrega o saber em seu corpo e não apenas numa caixinha fantasiosa dentro do crânio.

 Após a série bichos, segue-se:  trepantes, também objetos tridimensionais, ou seria melhor dizer, também seres que parecem estar em movimento pelo espaço. Entre eles, há a descoberta, há o Caminhando.

O trabalho, ou a proposição como viria chamar, sugeria que o participante pegasse uma fita de papel, desse uma volta e unisse suas duas pontas com cola. Uma fita de moebius seria, portanto, produzida.

Depois, com uma tesoura se começaria a cortar a fita horizontalmente, afastando seus lados, sem nunca apartá-los. Para que esses lados não se separem, era preciso uma escolha quando a tesoura tivesse prestes a separar o papel: esquerda ou direita e seguir. Sim, é preciso fazer essa escolha e arcar com ela.

A fita de moebius não é usada aleatoriamente, ela dá a ver e experimentar uma situação, um espaço torcido, um lugar. Uma topologia. A fita é uma superfície deformada e cria um espaço de paradoxo, onde dentro/fora se estendem um ao outro. Não se anulam, mas fazem o mesmo, a mesma superfície. Lygia experimenta esse paradoxo, vive essa experiência e sofre seu impacto. Ela produzia gesto e escrita durante todo seu percurso de criação. Suas proposições e seus textos caminham em torção, assim como a fita. Ela estava presente em cada pensamento/gesto que surgia para a artista e, por isso, o espanto, a atenção, a elaboração. 

Antes, o bicho emergia em mim, jorrava em uma explosão obsessiva- por todos os meus sentidos. Agora, pela primeira vez com o “Caminhando” - é o contrário. Percebo a totalidade do mundo como um ritmo único, global, que se estende de Mozart até os gestos do futebol de praia. (CLARK.1965.)

Assim Lygia segue o parágrafo. Há aqui um movimento, movimento, ressalto, que engloba gesto, ritmo (como ela fala), deslocamento e, em certa medida, um corte. Corte que não separa, mas é incisão que faz inscrição, corte que não assassina ou fere, mas promove mudança de percurso e paradigma, corte que funda e não mata, mesmo que algo no trajeto do gesto se perca.

O que digo aqui é que não se trata de um corte que aparta totalmente, mas que estende a superfície sobre qual ele incide. Um corte que faz mais, que não cessa. Por um lado, ele é do universo do encore: ainda. Trago o vocábulo francês pra deixá-lo ressoar no texto              

...                  

Ressoar (como uma televisão ligada no vizinho, como uma voz de alguém cantando longe) o discurso da psicanálise e de Lacan.  Um pouco mais, um pouco mais é o que diz esse encore, quase como uma súplica. Ele está no seminário 20 de Lacan[1], essa escrita que não cessa, escrita que, se ouvirmos em francês, não é somente encore, mais un corps. Um corpo que não para de se inscrever, um ato, um corpo que se faz na inscrição do corte.

Encore, un corps, um ainda que é também um gesto que não cessa de se fazer, um ato em gerúndio, caminhando. [2]

            É após os bichos que Lygia se embaraça com sua descoberta. O movimento de seu corpo que já interagia com os bichos, agora experimenta o Caminhando e uma diferença é reconhecida. Os bichos “jorravam” dela, havia ali uma experiência de interior e exterior, já no Caminhando, há o contínuo. A extensão entre corpo e mundo. Mas, como disse, algo já se anunciava nessa série de trabalhos nos quais os objetos possuem saber. O bicho sabe.

 um organismo vivo, uma obra essencialmente atuante. Entre você e ele se estabelece uma integração total, existencial. Na relação que se estabelece entre você e o Bicho não há passividade, nem sua nem dele.  (CLARK, 1960. s/p.)

Objetos que não deveriam ser categorizados como esculturas, talvez não devam ser categorizados como nada – eles não deixam. São como uma pequena legião de Odradeks[3], a entidade que perturba e preocupa o pai de família, aquela vida sem endereço certo e que sobreviverá a existência do narrador. O bicho sabe, diz Lygia. Eles sobrevivem a ela e sobreviverão a nós todos, os melhores e os piores de nós.

Os bichos eram constituídos de superfícies e dobradiças. O bicho podia interagir com quem fosse mexer com ele. Suas partes respondiam e conduziam o gesto e a ação do outro, produzindo uma relação de simultaneidade entre bicho e gente que mexe no bicho. Um faz, de certo modo, o outro, a interação produz corpo.  Pois o objeto responde, tem verbo, ele sabe. Isso gera a perturbação que Franz Kafka mostra em seu conto.  A superfície dura do alumínio é corpo que age sobre meu corpo, algumas amarras se desfazem, se apresenta um risco. Risco de desfazimento e diluição. É nesse sentido que digo que essa interação é uma simultaneidade que produz corpos. Claro que, para muitas pessoas, nada disso pode acontecer, pode-se mexer no bicho, sorrir e achar “a arte dos anos de 1960 nos trouxe a participação, entendi”, pode-se permanecer numa ideia lúdica do bicho, mas se pode levar à risca o que propõe Lygia. E assumir o risco de um desfazimento no outro ou no mundo. Você, sino.

Dissolvo-me no coletivo, perco minha imagem, meu pai e todos passam a ser o mesmo pra mim. (Clark. 1973)

 

2.    O espaço e o corpo.

O plano é um conceito criado pelo homem com objetivo prático: satisfazer sua necessidade de equilíbrio. O quadrado, criação abstrata, é um produto do plano. Marcando arbitrariamente no espaço, o plano dá ao homem uma ideia inteiramente falsa e racional de sua própria realidade. (CLARK, 1960)

Neste texto em que Lygia decreta a morte do plano, a questão é espaço e corpo. Quase me corrijo enquanto escrevo, não quero soar categórica demais em relação ao seu trabalho, dizer coisas como: a questão é parece inadequado para falar desse gesto que se estende por sua trajetória. Mas nos aproximemos dessa ideia de espaço e corpo. Como na interação com o bicho, espaço e corpo se transformam mutuamente, simultaneamente. Pensar em espaço é fazer habitar[4] uma superfície. O plano é “morto” e o espaço surge como agente, assim como o bicho, o espaço não é passivo. Há uma interação corpo/espaço, uma relação que os constitui. É na interação que corpo e espaço se constituem mutuamente, se fazem no ato. O Caminhando é também uma experiência dessa ordem. Através da tesoura, o corpo, as mãos, os braços vivenciam e entendem que é dentro e fora, essa superfície torcida da fita de moebius. A superfície é espaço.

Podemos pensar, por exemplo, na superfície do oceano: ela não está ali para aparar as águas ou se opor as profundezas. A superfície não é o limite do espaço, mas é espaço mesmo. A superfície pode ser um limiar, uma linha que se espraia e tem espessura. A superfície do oceano se estende a perder de vista, nela, microsseres vivem. A superfície é espaço, como nos mostra o oceano, a psicanálise e a matemática.

Lygia promove, portanto, essa dobra no espaço com os seus bichos.

Falemos, pois, da superfície, o espaço da superfície.

O desejo desta pesquisa e dessa escrita é Tocar a espessura branca da barata, como diz GH. Eu gostaria de tocar ou comer a espessura do gesto de Lygia. Experimentar no mundo da substância espessa e branca as mãos de Lygia. Quero deslizar na superfície da matéria e tocar o bicho, olhar mais sua dobra e alumínio, olhar no olho da dobra.

A dobra do bicho cria um vinco, uma marca, um plisse.  Olhar pra esse vinco nos faz saber que houve um gesto, uma ação de dobra. Um gesto que marca, inscreve, escreve. Esse vinco, como uma pegada, diz uma coisa: houve um gesto, o tempo se mostra ainda com a divisão entre antes e depois. Esse tempo está na materialidade desse pensamento, a matéria mesmo, o alumínio e a dobra.

Desejo olhar com as mãos dela, as pontas de seus dedos. Compreender com o suor das palmas das minhas mãos (suo muito nas mãos).

Lygia faz o mesmo que Helena Martins, Jean-Luc Godard, Tunga, Kazuo Ohno e muitos outros. Pensar com as mãos, produzir conceito com as mãos. O corpo está implicado tanto em sua escrita, quanto no ato de suas proposições. A dobra traz, portanto, essa ideia ainda de um tempo de antes e depois. Mas há o caminhando, um interior fora de mim. Um espanto ou descoberta.

O caminhando é uma fita de moebius, essa superfície que vem se tornando cada vez mais presente em minhas pesquisas como ponto de pensamento. Não digo um ponto de partida mas, como é de sua natureza, um movimento, um nó e um espaço que dá voltas, mas é sem volta.

Essa superfície topológica promove uma coabitação entre os espaços de dentro e fora. O dentro e fora estão juntos sem se anularem ou sem se transformarem em uma só coisa. Existe o paradoxo, um espaço de paradoxo e como diz Sueli Rolink, sobre Lygia, é preciso habitar o paradoxo.

Torção, a fita torcida. Essa torção se apresenta como uma força que faz dizer: o dentro é o fora. Nome de um dos últimos bichos de Lygia. Bicho que não possuía dobra, mas torções, curvas. Podemos seguir seu caminhando incessante desse nome de bicho e dizer: o dentro é o fora é o dentro é o fora etc. Além de um embaralhamento espacial, há um tempo que não é cronológico. Lygia faz do tempo espaço e vice-versa. Ela faz ao mesmo tempo que descobre. O espaço é o dentro/fora, o tempo não é cronológico, mas simultâneo. O ato. Lygia ainda propõe uma ação sobre a fita: com as duas lâminas pernas da tesoura faz o corte. Caminhando. Ação de corte que é inscrição.

O que chamo de inscrição é algo que marca, faz letra no corpo, algo como uma ruga ou uma lembrança que, quando feita, modifica o corpo. Passamos a andar e comer de outro jeito, perdermos uma terceira perna.[5] O peso muda. O nosso peso e o peso do ar. E também o fino peso entre pele e ar. Essa superfície que, como a do mar, é pasto de tantas bactérias. A pele.

O corte ao longo da fita, o corte caminhando que, como disse, estende o limite do espaço, espraia o paradoxo: o dentro é o fora. Um movimento constante, tempo simultâneo.

Esse gesto realizado por ela muda tudo. Muda, a meu ver, a trajetória de sua obra, muda o modo possível de se chegar ao seu gesto de vida.

Um corpo em torção, bicho gente, atenção desconcentrada, um modo de estar no espaço. Um estado de invenção.

O Caminhando é uma torção que produz um paradoxo, ela é o que faz. Faz e é torção. Este ato traz uma diferença em relação a dobra do bicho. Não há o vinco, mas passagem, trajeto, movimento. Há coabitação e simultaneidade, concomitância. A torção é paradoxo em ação, ato. Habitar o paradoxo é, nesse sentido, estar em movimento. Mesmo que lento, mesmo que um movimento que aparente imobilidade. Tomemos o exemplo do autor da epígrafe deste texto,  Kazuo Ohno, mestre de Butoh, dança que trabalha, entre outras coisas,   para entender esse corpo parado em movimento. Lembro de uma cena, certa vez descrita a mim, de um ator parado no palco enquanto seu corpo suava muito, como se corresse. É desse “estar parado” que me refiro.  Corpo imóvel que é um estar esvaziado e pleno. O ato de Lygia, a torção que se estende ao infinito, não é o infinito de um pra sempre, pois se trata de outro modo de lidar com o tempo. Um estar parado e movente, uma força de bactérias efervescentes, me dá vontade de dizer e ouvir, ouvir o burburinho e a respiração das bactérias.

Ao inscrever a torção, Lygia faz um corpo, produz corpo, podemos experimentar e produzir em nós esse corpo que se move e pensa com mãos, pés, língua. Ver como quem come, como faz GH, escutar com as costas como fez Zinedine Zidane em campo. Esse corpo pode estar presente na dança, no esporte, nas ruas. Isso de modo mais evidente, mas também no corpo que escreve e é escrito. É escrito no ato da escrita, essa torção que nos desloca e faz tempo e espaço. Um corpo que faz e se faz na escrita. Uma respiração do tempo que se faz em ato.

 Referências bibliográficas:

CLARK, Lygia. “Caminhando”. In: Livro Obra, 1964. Retirado dehttp://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idarquivo=17 em 26 de agosto de 2017.

CLARK, Lygia. “Do Ato”. In: Livro Obra, 1965. Retirado de http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idarquivo=17 em 26 de agosto de 2017.

LACAN, Jacques. Encore. Rio de Janeiro: Escola Letra Freudiana, 2010. *edição não comercial.

LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

OHNO, Kazuo. Treino e(m) poema, São Paulo: n-1 edições, 2016.

[1] LACAN, J. Encore. Rio de Janeiro: Escola Letra Freudiana, 2010. (edição não comercial)

[2] Aqui vale uma nota, não uma nota explicativa, mas distrativa. Uma distração parece distanciar da limpeza e objetividade com as quais se mostra uma ideia em texto. Mas a distração, olhar pela janela, lembrar de uma história, faz também os pontos e nós da narrativa. Cria fundos e formas, ambienta, por vezes, faz cenário para o movimento.

Estava, há um par de anos, tomando café com Fred Coelho, ali pelo pátio da universidade onde trabalhávamos, a prosa seguia nossos interesses, pesquisa e silêncios. Este último muito raros e esparsos devido a capacidade prosódica de meu interlocutor. O caminho nos levou à Lygia Clark e seu caminhando, foi quando ambos nos empolgamos e as vozes ganharam o volume da paixão. Os objetos de pesquisa têm disso e nos apaixonam. Um momento ele pergunta: por que caminhando? Quase já aos gritos ou entoando um canto qualquer, as vozes, entrelaçadas como o próprio trabalho de Lygia: o gerúndio. Não sei dizer se eu disse a ele ou ele a mim, mas o gerúndio traz esse sem cessar. Um caminhar, um ato que se faz todo o tempo. Depois de alguns meses esse tempo verbal nos uniu mais uma vez, assistíamos a palestra de Marcia Schuback na PUC, ela dizia sobre um formando, evocava um gerúndio necessário. Ganhei uma cotovelada de meu amigo e sorrimos como duas crianças diante da escuta de sua palavra secreta.   

[3] Refiro-me ao conto de Franz Kafka Preocupações de um pai de família, traduzido por Modesto Carone.

[4] Digo “fazer habitar” porque o espaço não é mais mero suporte, seja pictórico, seja a própria sala que recebe os objetos da exposição.

[5] Referência ao livro A Paixão segundo G.H.