Diário

Um exemplar do diário da escritora Katherine Mansfield. Não se trata dos diários completos. A autora teria destruído parte deles, não queria publicá-los. O fizeram depois de sua morte, naquele momento, não quis mais saber daquelas anotações. Não que ache que todas as notas ou diários devam permanecer ocultos. Apenas com ela foi assim. Um gesto de solidariedade, como se pudesse dizer a ela: esta bem, não vou ler. Pode deixar, não vou ler. Fui um pouco mais e tentei concretizar essa vontade de não publicar o diário. Deslocar suas memórias, preservá-las ou esconde-las.

Com um pequeno rolo de fita corretora de máquina de escrever antiga e uma ponta seca, espécie de caneta sem tinta, retirei tipo por tipo do livro.

Era um aparente apagamento. Mas as letras não sumiam das páginas, eram deslocadas para o rolinho. Reescrevi, de certo modo, o diário. Tive que passar por cima de cada letra. O fiz de trás para frente. Garantindo que não leria o texto de modo a apreender os fatos impressos naquelas páginas. Outro modo de leitura. Sem acesso à mensagem. A apreensão seria das letras. Elas foram deslocadas para o rolo de fita e, de algum modo, deixaram um rastro em minhas mãos. Escrever.

Fazia o trabalho acreditando estar guardando a memória da escritora neozelandesa. Acreditava fazer um trabalho sobre a memória. Foi no meio do caminho, um percurso onde se acumulavam os rolinhos, que percebi o que ocorria com as páginas. A marca de cada letra permanecia. Um baixo relevo, uma letra em negativo. Uma escrita de vestígios e ainda assim uma escrita. Nas páginas, a marca da ausência do texto.

Foi olhando esse vazio que percebi ser um trabalho sobre o esquecimento. O apagamento ainda deixava letra. Ainda havia uma escrita. Uma escrita do esquecimento.

Retirar as letras do papel com a ponta seca era como uma leitura minuciosa, mas também uma maneira de reescrever o texto. Era quase como se eu repetisse o gesto de Katherine Mansfield. Quase. Me vi repetindo não o gesto da escritora, mas o gesto mítico de Penélope. Desfazia um tear.

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