Irmãos Karamazov

Peguei essa foto no perfil do espetáculo, no instagram.

Os irmãos Karamazov, ontem fui ver a peça no SESC Copacabana.  

Tenho gostado muito de ver livros no teatro. Não chamo de adaptação, ou, como alguns dizem, uma tradução da literatura pro palco. Acho que se trata de assistir uma leitura daquele livro, ali encenado. Já tinha lido o livro, claro que não é pré-requisito para a peça,  fui ver uma leitura do romance, ela pode se dar de modo solitário ou no conjunto da cena. Não me refiro a clássica leitura de mesa, mas em chamar a montagem de um modo de ler. 

Ver, escutar o livro que é compartilhado na cena, na voz e corpo dos atores. Quero dizer que não fui ver a Luisa Arraes adaptando Dimitri pro seu corpo, por exemplo, mas sua leitura de Dimitri em seu corpo. A fúria vulcânica de Dimitri tomando cena em Luisa.  

Quando um livro está em cena, leituras estão sendo compartilhadas no espaço do teatro. E isso é incrível. Se trata de alguma coisa diferente da crítica ou da comunicação a uma academia, a leitura mesma, o corpo e a palavra, os nossos olhos e ouvidos dispostos a esse encontro. Um acontecimento.

Um livro vai pro teatro e ganha esse corpo, essa vida. É o jeito que, a mim, mais interessa compartilhar leitura com alguém. Não apenas um, mas o coletivo que é o teatro, um corpo de múltiplos corpos e pulsações. Não só os que estão no palco, mas o que sustentam tudo aquilo nas coxias e bastidores, bem antes e depois de tudo acontecer. (Ainda bem que tem Fabi no mundo.)

Gostei imenso dessa leitura, gostei muito do que me disseram sobre o livro, ali,  naquelas horas dentro do teatro.  Gostei muito do suor, da voz daqueles atores. Tenho muita afeição atores, ver suas construções, vê-los em diferentes trabalhos, vê-los mudar. Adoro essa profissão, tão lindo esse trabalho. Fiquei muito impressionada com Nina Tomsic e seu Aliocha, o mar traz, às vezes,  novidades com as ondas, o teatro faz isso também, quando traz novos atores para o palco. É muito legal, é muito bom quando um jovem ator ou atriz surge e vi surgir uma ontem, não a conhecia. Que atriz!  

Tem um momento, no qual toca uma música contemporânea, ali vi que Dostoieviski está aqui, é hoje. É hoje sem deixar de ser o século XIX, sem deixar de ser a Rússia, é o Rio de Janeiro. Isso acontece com obras da literatura e da arte: elas são vivas quando evocadas. São contemporâneas aos corpos e vozes que as encarnam, que as leem e falam sobre elas. Corpos que não precisam estar em acordo com o gênero do personagem, pois é palavra, corpo; performa o discurso, a escrita e sua leitura. 

Se trata de literatura, teatro,  dança, voz arte visual (vermelho sobre branco), é ato. 

As escolhas, imagino devem ser difíceis, o que encarnar daquele romance? Que caminho percorrer? O caminho das perguntas sobre Deus, a frase que entoa como um ritornelo em sua repetição: se Deus não existe, tudo é permitido. Ela é absolutamente necessária hoje, neste país, neste mundo no qual estamos. É Deus, então, quem daria a medida do limite? Esse pai? Será o esquema de filiação que devemos seguir? Ou o parricídio deve ser cometido assim? Não matando Deus, posto que é palavra, mas assassinando o sistema de filiação, destituindo essa ideia. Que cada um siga suportando sua religião. Mas que nos separemos dessa hierarquia paternal, patriarca, paternalista, e assumamos a aliança, o parentesco por aliança e comunidade. Não mais por herança. 

O mal absoluto existe? Ou, como diz Gruchénka ninguém é só mal ou só bom? Deus é palavra, ideia feita de histórias,  se o Deus foi inventado pelo homem, o diabo também, diz Ivan.  E, de alguma maneira, o Grande Sertão ecoa nessas palavras. (Como se o corpo de Ivan carregasse a memória de Riobaldo. Quantos personagens cabem em um ator? Infinitos, talvez)  O diabo não há, o que há, é homem humano.  Dostoievisk poderia ter dito isso que Guimarães veio a dizer décadas depois, Machado poderia estar ali, se perguntando sore as relações entre igreja e estado. É muito bom ver essa essas ideias, essas palavras ecoando por tantas outras superfícies além da peça linda Dostoievski. 

A discussão de Deus como limite, afinal, quando se coloca: se Deus não existe, então tudo é permitido,  quando se constrói essa essa sentença, se dá a essa figura a régua de nossas ações, um limite. Porém, se nos desvencilharmos dessa ideia de filiação, teremos que construir essa régua como comunidade, como aliados. A peça, a medida em que vai se manchando de vermelho sangue, nos traz uma pergunta: como elaborar o ato sem torná-lo literal? Como o parricídio, a morte de um ente superior e autoritário (seja deus, pai ou ditador), sem a literalidade do golpe que faz sangrar? O ato com elaboração, o ato que se transmuta em arte, em literatura, teatro, cinema etc. é o único possível para sairmos desta enrascada chamada humanidade. Fazer pactos com os animais, com a natureza, com o que nos surge como estranho ou estrangeiro. Poder ter outro tratamento que não o de opressão. Poder pactuar com as águas, entende-las para que não inundem nossas cidades, respeitar o fogo para que não queime nossas cidades. Fazer uma aliança com o clima para respeitá-lo e podermos seguir a vida sobre esta superfície redonda. Sim ,chega de bobagens, é redonda. 

Essa discussão está muito carnal na peça, no sentido de ser mesmo corpo, encarnado. No sentido de ser mesmo encarnado, vermelho. Uma discussão totalmente contemporânea e é trazida pela entrega dos atores, está no figurino deles, na luz, nos panos do teto. (Uma tenda, velas que seguiam com ventos?) 

Os quatro filhos. Aqueles que vivem em seus redemunhos, para falar de novo de  Rosa, e precisam ser algo para além de filhos de Fiódor, não, não suportam mais essa condição. É preciso cortar esse fio, criar uma outra costura com suas linhas. 

O que eu carrego dessa peça é isso: a gente precisa de aliados e de parentesco que não sejam por filiação. E a lembrança de atores em cena, um elenco incrível. 

Hoje, quis escrever sobre isso, sobre a celebração de uma leitura, uma obra encarnada através de um pacto, uma aliança cuja a linha é o desejo. O desejo de montar o romance. E o desejo, ele sustenta e suspende montanhas. É mais que Deus. O desejo, ele existe, poucos o encaram, mas ele existe, já Deus… não saberia dizer. 

No mais, digo, grito: Urra Karamazov!!

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